O Espírito que se assinou Pascal transmitiu em Genebra, em 1860, comunicação na qual afirmou que “O homem só possui em plena propriedade aquilo que lhe é dado levar deste mundo”, conforme transcreve Allan Kardec em “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, cap. 16.
Sem assinatura, o que pode ser atribuído a O Espírito da Verdade, há a seguinte conceituação sobre as paixões n’O Livro dos Espíritos (q. 907):
Pergunta: “Será substancialmente mau o princípio originário das paixões, embora esteja na natureza?” Resposta: “Não;
a paixão está no excesso de que se acresceu a vontade, visto que o
princípio que lhe dá origem foi posto no homem para o bem, tanto que as
paixões podem levá-lo à realização de grandes coisas. O abuso delas é
que causa o mal”.
Allan Kardec adiciona o seguinte comentário à questão 908: “As
paixões são alavancas que decuplicam as forças do homem e o auxiliam na
execução dos desígnios da Providência. (...) O princípio das paixões
não é, assim, um mal, pois que assenta numa das condições providenciais
da nossa existência”.
Nestas
colocações está um autêntico desafio sobre a natureza do homem. Uma,
aparentemente, do Espírito Pascal, induz ao completo desapego à
propriedade, que não pode ser levada deste mundo. Outra, sob a
responsabilidade de Allan Kardec, justifica e até sanciona as ações
humanas originárias das paixões, embora coloque que estas se tornam
perigosas se não forem governadas pelo Espírito.
Pergunta-se:
sob o pressuposto de que o homem só é proprietário daquilo que pode
levar deste mundo, ser-lhe-á saudável, dentro de seu complexo
existencial, anular ou desprezar os impulsos criadores derivados das
paixões?
Acredito
que a proposta espírita sobre a propriedade deva resultar do
entendimento das colocações acima, de suas interpretações, sob a ótica
das informações agregadas da Filosofia Espírita, que desde logo
descartam as conclusões maniqueístas.
A
afirmação de Pascal é verdadeira enquanto fato físico, mas incompleta,
se tomada ao pé da letra, na medida em que não incorpora as experiências
derivadas do exercício das paixões e até de seus benefícios
consequentes. Aniquilar as paixões é ir contra a natureza do homem
terreno que se conhece. Franqueá-las, sem limites, implicará em
prejuízos para a vida do Espírito e para o meio em que este atua.
Questiona-se,
agora, o limite ou as conveniências das iniciativas pessoais, sob
quaisquer fundamentos, sejam naturais, existenciais, pessoais ou
doutrinários.
Os
sistemas que se basearam no darwinismo social de Herbert Spencer, com
clara premiação à propriedade individual, sancionaram a acumulação pela
chamada livre iniciativa; defensores da competição econômica e social,
na busca de resultados (lucros), acabaram instituindo a mais-valia, uma
apropriação além do justo, dos resultados do trabalho. A especulação, a
sonegação, a aniquilação do concorrente, a compra de empresas menores
por outras maiores, o monopólio, os trusts, a “validade” da destruição
de produtos para melhoria de seus preços, receberam o amparo desse
sistema.
Max
Weber, quando procura identificar na história o espírito do
capitalismo, remonta ao calvinismo, cuja teologia prega o amor ao
trabalho, contrariamente à concepção medieval que considera o trabalho
uma maldição. Calvino, no entanto, não coloca a riqueza gerada pelo
trabalho como instrumento de gozo ou prazer. “Combinando essa restrição
ao consumo com a liberação da procura da riqueza, é óbvio o resultado
que daí decorre: a acumulação capitalista através da compulsão ascética à
poupança”, diz Weber.
Afirmam
os Espíritos que a propriedade só é legítima se adquirida sem o
prejuízo de outrem. A mais-valia, portanto, é a primeira consequência
contra a qual se coloca a Doutrina Espírita. Expressa também esta
doutrina que, para o homem, o limite do trabalho é o das forças, pelo
que lhe tira qualquer argumento tendente ao ócio permanente.
Existe,
assim, um limite natural ao aumento desmesurado de bens nas mãos das
pessoas, na medida em que estas devem legitimar pelo trabalho tudo o que
obtêm. Os Espíritos colocam até sob suspeita a intenção de acumular-se
riqueza pelo “desejo de fazer o bem.” (questão 902 de OLE).
Aqui
está, a nosso ver, o método redistributivista espírita. Ele é
preventivo, desarma futuras desigualdades sociais, na proporção em que,
se cada um recebe apenas aquilo a que faz jus, opera-se a imediata
repartição dos frutos do trabalho.
A
tese espírita, portanto, não é contra a propriedade de forma absoluta,
nem contra a acumulação. Grandes obras exigem recursos correspondentes.
Até certo ponto, a propriedade pessoal e sua busca escoam a capacidade
criativa das pessoas, mas quando a propriedade assume um interesse
social, da qual muitas outras pessoas dependem e para a qual contribuem
com seu trabalho, é justa a sua socialização.
Não
significa, todavia, a estatização da propriedade. Esta pode até
existir, ser aceita por uma comunidade, que elege o Estado como gestor
único dos bens. O avanço do Estado na economia, no entanto, em qualquer
sistema, tem-se mostrado adverso. A burocracia cria e se apossa da
mais-valia, enquanto exige hegemonias político-ideológicas contrárias
aos princípios da liberdade política.
A
socialização que defendemos será entre os participantes da produção, em
estilo cooperativista e solidário, com a mínima participação da
burocracia estatal, pela abolição de privilégios de qualquer espécie,
embora mantidas hierarquias e algumas diferenças na distribuição dos
resultados do trabalho.
Para
ajudar a esse objetivo, deve-se desenvolver a pesquisa sobre o homem,
sua natureza e objetivos, da qual derivam informações que nos façam ver
os equívocos do egoísmo e do apego excessivo a valores de curta duração.
Será a visão do homem-espírito, em contínua busca, sem complicar-se com
os meios.
■ Nota do PENSE: Tema apresentado no painel “Propriedade”, dentro do tema “Espiritismo e Constituinte”, no II Encontro Nacional Sobre o Aspecto Social da Doutrina Espírita, realizado em São Paulo de 28 de fevereiro a 3 e março.
Fonte: Abertura - jornal de cultura espírita, maio de 1987, ano I, nº 2. Licespe – Santos- SP.
José Rodrigues (1937-2010), economista e jornalista, um dos fundadores e editores do site Pense - Pensamento Social Espírita e fundador da ARS - Ação de Recuperação Social, de Santos-SP, foi redator do periódico Espiritismo e Unificação e membro do conselho de redação do Abertura - jornal de cultura espírita. É autor do livro “Vila Socó: Uma Tragédia Programada”.
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